Especialização precoce em jogadores de futebol – um ponto de vista a partir de um período de atuação na Holanda.
Devido ao interesse em participar do Fórum SESI: Especialização Esportiva Precoce – 2005, elaborei um texto no qual discutia o assunto a partir de reflexões baseadas em uma experiência de seis meses nas categorias de base do NEC–Nijmegen, um clube da primeira divisão holandesa de Futebol.
Sabendo do interesse que este artigo poderia despertar nos leitores do TE.com procurei adaptar a discussão para que o texto se tornasse mais interessante aos leitores deste “site”.
A Especialização Precoce (EP) é um processo que vem sendo a tempos discutido por especialistas em treinamento esportivo, e conseqüentemente no meio futebolístico. Comumente, ao se discutir EP, são mais enfatizados aspectos negativos relacionados à sobrecarga física imposta a jovens atletas que ainda não estão aptos a receber tais cargas de treino, e assim muitas vezes são acometidos de lesões crônicas que impedem que os atletas possam seguir praticando atividades de alto rendimento.
Também é bastante discutido o fato de jovens atletas estarem desde muito cedo especializados em determinada função, no caso dos jovens jogadores de futebol, limitando–os a uma posição específica dentro da equipe, o que, certamente, pode limitar suas possibilidades de ação no futuro.
Exemplo bem característico deste acontecimento é o fato de muitos treinadores optarem por relacionar alguns jovens jogadores, que se apresentam em estágios de crescimento mais avançados que a média para a categoria, para jogarem exclusivamente de atacantes aproveitando da maior força adquirida com o crescimento. Porém, mesmo com todo êxito conseguido na juventude, muitos destes jogadores falham em idades mais avançadas, por não serem capazes de atuar contra jogadores que apresentam níveis de força equiparados ou mesmo superiores – uma realidade nas idades mais avançadas e nos profissionais.
Entretanto, o principal objetivo deste texto é discutir as ocorrências da EP em jovens jogadores holandeses num determinado estilo de jogo de futebol. Neste caso, o estilo de jogo adotado pelo clube e, de um modo geral, adotado também pela maioria dos clubes holandeses. Vale ressaltar que todos no clube tinham grande preocupação em não especializar precocemente jogadores em determinada posição.
Para uma melhor compreensão do problema é importante discutir um pouco sobre o estilo de jogo holandês. O jogo 11×11 holandês, principalmente nas categorias de base, onde não há ainda a presença maciça de jogadores estrangeiros, nos remete a um jogo brasileiro em “2 toques”. Isto ocorre devido à velocidade na troca de passes e na movimentação dos jogadores. No estilo de jogo observado, a capacidade de manutenção da posse de bola é executada através de trocas de passes rápidos entre os jogadores da equipe, já no Brasil, os jogadores utilizam, e muito, de recursos técnicos individuais para que a equipe mantenha a posse de bola. O estilo de jogo holandês exige dos jogadores excelente capacidade de execução do passe, constante ocupação de espaço e desmarcação.
Assim, devido ao objetivo de formar jogadores com as características descritas anteriormente, foi possível observar, desde categorias como a sub 13 e sub 12, uma grande preocupação no treinamento técnico do passe e também na aplicação deste fundamento no contexto do jogo 11×11 – esta por sinal é uma característica bastante positiva no treinamento. Ou seja, há sempre a busca pela transposição do que é aprendido em treinos técnicos para o jogo, fato que infelizmente é esquecido por muitos treinadores, que selecionam exercícios para o treinamento técnico, aplicam estes exercícios e depois exigem que os atletas utilizem os recursos aprendidos sem criar meios para que os jogadores façam a transposição para o jogo. Vale ressaltar que nem sempre os jogadores que apresentam maior repertório técnico são os melhores jogadores, isto ocorre principalmente, pois estes jogadores não serem capazes de aplicar com sucesso seus recursos técnicos ao jogo.
Também foi possível observar a grande utilização de jogos reduzidos para tentar estimular as capacidades de ocupação de espaço e desmarcação. Estes exercícios apresentavam na maioria das vezes, além de regras específicas, superioridade numérica para a equipe em posse de bola, favorecendo assim o jogo rápido e de troca de passes. Durante estes exercícios os jovens atletas eram sempre confrontados e questionados sobre as possibilidades de ação que melhor favoreceriam o estilo de jogo adotado, numa tentativa de otimizar o entendimento destas mesmas possibilidades de ação. É de se destacar também a busca pela transposição do que é aprendido nos jogos reduzidos para o jogo 11×11.
Conclusões
Algumas conclusões, referentes a esta temática, que eu pude tomar deste período de atuação no NEC–Nijmegen são:
– A metodologia empregada estimulava o desenvolvimento de jogadores capazes de jogar em alta velocidade com as características idealizadas pelos treinadores, ou seja, há objetivos bastante definidos e há busca pela obtenção destes objetivos. Acredito ser importante destacar este ponto, pois acredito que um dos principais males de um programa de treinamento é a falta de objetivos bem definidos e também a falta de meios bem estruturados para se tentar atingir os objetivos – quando estes existem;
– Os jogadores idealizados pelo clube, ou seja, capazes de jogar seguindo o modelo de jogo adotado, apresentavam grande dificuldade em atuar num contexto de 1×1 com maior pressão. Isto provavelmente ocorria, pois, em todo o processo de formação, estes jogadores foram estimulados a optar pelo passe em detrimento de optar pelo enfrentamento 1×1, quando o objetivo do momento era a manutenção da posse de bola, desta maneira, não desenvolveram meios para enfrentar estas situações como fizeram para atuar seguindo o estilo de jogo adotado pelo clube. Podemos constatar que, para suplantar esta “deficiência” citada anteriormente, muitos clubes utilizam nas equipes profissionais jogadores oriundos da América do Sul e da África;
– O estilo de jogo citado está tão arraigado na cultura holandesa que alguns treinadores com quem trabalhei reconhecem o problema mas enfrentam grande resistência para uma possível mudança. Esta resistência vem dos próprios jovens jogadores, dos pais, dos clubes, entre outros.
Gostaria de ressaltar que o objetivo deste texto não foi comparar qual metodologia de trabalho, a brasileira ou a holandesa, é a melhor. O objetivo deste texto foi apenas ilustrar uma realidade de trabalho diferente da nossa e discutir como alguns problemas pertinentes ao nosso trabalho ocorrem num contexto diferente ao contexto brasileiro.
.: Felipe Mota, Mestre em Ciências do Desporto, na especialidade de Treino de Alto Rendimento Desportivo da Universidade do Porto (Portugal).
.: Bacharel em Esporte pela USP
.: Experiência em treinamento de equipes no Brasil e na Holanda.
.: felipesaojose@hotmail.com